quinta-feira, junho 16, 2005

Surto de consciência

Oito da manhã. Ao canto da mesa, no chão, põe a mala. Em cima, põe o celular. Liga o computador e vai ao banheiro. Na volta, passa na copa, bebe um copo de água e pega um pouco de café. Vem para a sua mesa. Senta. Estrala os dedos e digita a senha de acesso à rede corporativa. É o começo de seu produtivo dia. Seu dia...

Tem uma tarefa planejada para a manhã. Confeccionar uma planilha com informações sobre os resultados das vendas dos seis meses anteriores. Haverá uma reunião com os diretores da empresa às catorze horas. Essas informações serão imprescindíveis para nortear o que será decidido nesse conclave. Se e o quanto cortarão na carne, para equilibrar as contas da empresa e continuar mantendo as metas de resultados anuais. Se as metas não forem atingidas, os investidores ficarão decepcionados e será difícil obter recursos para os projetos de crescimento do ano seguinte. A empresa, para crescer e se demonstrar rentável e atrativa aos capitalistas, se endivida. Para honrar as dívidas, corta despesas. Não tendo mais como diminuir os custos, encolhe sua capacidade produtiva demitindo. Uma lógica inefável. Para crescer, a empresa diminui. Para crescer, a empresa aumenta... o desemprego.

Tem consciência da capitalidade de sua atual tarefa. Está ansioso. Receia o produto que advirá de seus esforços. Receia parir um anticristo. Respira fundo e começa com um destemor, reconhecidamente falso, a produção da inexorável planilha.

Então digita, e clica, e abre arquivo, e importa dados, e elabora fórmulas, e digita, e clica, e digita, e clica, e abre outro arquivo, e importa mais dados, e digita, e clica, e executa programa para produzir mais dados, e abre arquivo, e importa mais dados, e digita, e clica, e elabora fórmulas e fórmulas e mais fórmulas, e digita, e clica, e digita, e clica... Por fim, executa as fórmulas e calcula as informações que encerram sua tarefa da manhã. Porém, antes de finalizar de vez, ainda formata os dados produzidos e clica no botão que grava a planilha no disco do computador.

Suspira. É a hora da verdade. Vai avaliar a planilha para ter o seu juízo final. É o anticristo ou não? De repente, um clarão de pensamento lhe irrompe. Fica em transe.

Uma explosão. A Grande Explosão. Espaço se expandindo. Rochas frias e incandescentes se consolidando numa harmonia tão perfeita de tão caótica. Água, ar, terra e seres animados e inanimados surgem. Um grande apêndice de pedra brota e rareia o que era floresta densa. E os que ali vivem dependurados, passam a viver ao nível do chão e de coluna ereta. Então, surge você. Surge você no meio de um mundo já feito, sem nada entender como tudo foi feito. Você está ai. Quem é você? O que faz você? O que será você? É um monte de carne, sangue e osso que inexplicavelmente tem duas capacidades que o distinguem de qualquer outro tipo de ser que habita ou habitou esta terra. Pensa e sente. Está vivo. E será morto...

Após o clarão, sente vontade de sumir. Não se move, não pisca, parece que não respira. Quando pensa que sumiu, sente que dormia e acorda. Assim, puf, do nada. Por ínfimos instantes não sabe aonde está. Não tem noção nenhuma de quanto tempo ficou cataléptico.

Olha para o relógio. Treze e cinqüenta. Também não tem noção de quanto tempo havia passado fazendo o trabalho. Imprime algumas cópias da planilha e as deixa na mesa do seu chefe. Um ruído chama sua atenção. É o seu estômago que grita roucamente. Se dá conta que está com fome... E vai almoçar.

Ivo La Puma
São Paulo, 16/06/2005

Um comentário:

Anônimo disse...

Nossa, me prendeu do começo ao fim, tive várias vezes a impressão q o txto ia terminar e de repente o final. Verídica ou ñ, as vezes tenho uma sensação estranha de estar agindo tão mecanicamente, tão longe do meu emocional... e isso assusta.