sábado, julho 30, 2005

O inimaginável

Imagina-te um irracional

Não dá, é impossível
Imaginar pressupõe raciocinar
Pensar

Quem pensa, existe
Logo,
Não dá para imaginar o que não existe

São Paulo, 21/03/2005

sexta-feira, julho 29, 2005

Radio-man

"Mas nós vibramos em outra freqüência
Sabemos que não é bem assim
Se fosse fácil achar o caminho das pedras
Tantas pedras no caminho não seria ruim"

Outras Freqüências - Engenheiros do Hawaii

Uma idéia tem germinado na minha cabeça, não sei se original, que é a seguinte: o sentimento de solidão é inversamente proporcional ao grau de sintonia de você com relação ao mundo. De mundo, compreende-se tudo. Pessoas, lugares, coisas. Sei que é temerário reduzir a fórmulas matemáticas assuntos do espírito. Não creio que a natureza humana possa ser compreendida com exatidão, muito menos exatamente. Mas, às vezes, fazer uso de ferramentas que funcionam em outras esferas da vida, como a Física ou a Química, ajudam como ponto de partida a quem se mete à besta de se meter em questões insolúveis.

Por que nos sentimos sós mesmo quando acompanhados? Por que temos aquela sensação de "peixe fora d'água" em certos lugares? Por que certas situações, atitudes ou mesmo discursos nos causam desconforto? Por que há profissões em que nos adaptamos melhor e outras não? Essas são algumas questões que me surgem quando me sinto só, muitas vezes, mesmo quando estou no meio de uma multidão.

Para buscar algum conforto diante da inquietude que sempre me surge, me remeti às sensações que tenho nessas ocasiões, mais precisamente, ao que me faz tê-las. Por exemplo, quando vou a uma danceteria e vejo aquele monte de corpos se chacoalhando, ora harmoniosa, ora desarmoniosamente, é como se o chiado de um rádio em dessintonia zumbisse no meio dos meus miolos. E a coisa piora quando vejo alguns desses se beijando sem, muitas vezes, mal se conversarem. Uma porque no meio da barulheira que há nesses lugares é impossível a permuta de palavras. E tudo isso não me entra no espírito. Pois eu juro - meu Deus! - eu juro, que já tentei fazer tudo isso para ver qual que é o barato. Não vi barato nenhum...

Outro exemplo é quando estou numa roda e os assuntos das conversas giram em torno de carros, bolsa de valores ou política. Esse tipo de situação acontece comigo freqüentemente em reuniões de confraternização entre os funcionários da empresa. Eu não consigo entender o que faz a turma gostar tanto de carro, principalmente daqueles carros que nunca poderão ter. O que entendo um pouco é a fixação pela discussão sobre investimentos em bolsas de valores ou outras formas de arrendamento de capital, afinal, o objetivo aí é ganhar grana. Apesar de eu não ser um leigo em economia, não é algo que é palatável ao meu estômago. Não me interesso por assuntos financeiros. E sobre política, apesar de eu me interessar (ao ponto de me fazer estudar Ciência Política), para mim é difícil discutir com a turma com que costumo lidar no cotidiano. Se escuta cada barbaridade! Principalmente daqueles que são seus chefes! Então, fico na minha moita e evito a polêmica, para evitar úlceras. Enfim, quando o assunto é algo que não me desperta o interesse ou quando os interlocutores não falam a mesma língua, o que fica no ar é a chiadeira do rádio tentando encontrar a sintonia da estação correta. Se os assuntos que despertam o seu interesse são poucos ou despertam o interesse de poucas pessoas, significa que você é mais sozinho do que outras pessoas que tenham um leque de assuntos prediletos mais variado. Ainda bem que eu gosto muito de futebol, senão, não teria muito o que conversar com essa galera, não é mesmo?

E quando se é obrigado a desempenhar uma tarefa que não se gosta? Ou quando se é obrigado a fazer algo que confronta seus princípios? Não dá um desconforto? E isso geralmente acontece no ambiente profissional, onde, por causa do grilhão que temos acorrentado ao estômago desde o nascimento, somos obrigados a fazer certas coisas que causam o mesmo desconforto da ingestão de um batráquio. Esse sentimento de desconforto é o mesmo do chiado do rádio quebrado que já não sintoniza mais estação nenhuma.

Isso tudo me sugere que cada um de nós sejamos como um rádio. Um rádio capaz de sintonizar algumas certas estações e em alguns determinados lugares. Estações e lugares que possuem a mesma freqüência que a nossa, que fazem sentido para nós. O que não faz sentido, o que não tem a mesma freqüência, causa ruído, chia. É o que faz o rádio ficar em dessintonia. E o tempo cujo o rádio fica em dessintonia, é o que dá a medida da solidão.

São Paulo, 29/07/2005

quarta-feira, julho 27, 2005

Ainda sobre a Liberdade

"Você precisa saber
O que passa aqui dentro
Eu vou falar pra você
Você vai entender
A força de um pensamento
Pra nunca mais esquecer"

Pensamento - Cidade Negra

"A livre expressão não significa apenas ter o direito de ser ouvido, mas ter também o direito de ouvir o que os outros têm para dizer."

Sobre a Democracia - Robert Dahl

Andei relendo o que escrevi sobre a liberdade dias atrás, notei que cometi uma confusão e também me esqueci de discorrer sobre outras duas formas de liberdade que considero muito importantes.

Vamos primeiro à confusão. Quando me meti a dizer que a consciência "por um lado, nos liberta da ignorância quando nos permite o esclarecimento, e por outro, nos prende, pois toma parte da nossa liberdade", eu acabei me contradizendo. A consciência, na verdade, não tolhe parte da nossa liberdade plena, quando nos impede de cometer certas atitudes - àquelas que cometemos quando "inconscientes". Pelo contrário, a consciência é condição fundamental para o exercício do livre-arbítrio, outra forma de liberdade que discorri no texto anterior. A consciência nos ajuda a decidir aquilo que queremos e, inclusive, aquilo que não queremos. A minha confusão sobre a consciência como limitadora da liberdade se dá porque se fôssemos seres irracionais, seríamos livres, de uma certa forma. Seríamos livres de muitas angústias e condições que a nossa espécie, racional, está sujeita. Por isso tenho para mim que a consciência é uma forma de prisão. A prisão de qualquer nascido como Homo sapiens...

E falando em consciência, me remeto a mente. E na mente, se manifesta o pensamento, que também é usado no exercício da consciência. O pensamento é a manifestação mais livre que conheço. Não há limites para o pensamento e é impossível censurá-lo. Você pode censurar um indivíduo de se expressar, você pode jogar um sujeito numa cela e tolher sua liberdade de ir e vir, mas você não consegue parar de pensar, muito menos de censurar algum pensamento. É por isso que eu sou muito desconfiado desse negócio de auto-ajuda. Dizem: "pense positivo"! Por que será? Por que será que é preciso esse tipo de mecanismo para se pensar positivo? Por que é preciso forçar para pensar em algumas coisas e não se pensar em outras, ditas negativas? Porque o pensamento é livre, meus caros! Livre! Tenham consciência disso. Podemos pensar coisas "positivas" quando quisermos, mas não podemos nunca não pensar coisas "negativas".

E para finalizar, por ora, quero tratar da liberdade de expressão. Tipo de liberdade, essa, passível de ser censurada, até nas democracias, até nos países ditos livres. Essa liberdade é uma das que mais prezo no mundo, pois a considero fundamental para o desenvolvimento de cada um de nós, como homens, como indivíduos ou como cidadãos. Na nossa civilização, essa foi uma das primeiras liberdades que se manifestaram, e foi amplamente difundida com o advento da imprensa e, da conseqüente, liberdade de imprensa. E nos tempos bicudos que vivemos atualmente, não podemos nos esquecer dessa tal liberdade (a de expressão). As notícias que lemos ou assistimos nos jornais nos fazem simplesmente perder a fé. Perder a fé na humanidade. Contudo, é quando perdemos algo que sentimos tanto o quanto esse algo era importante. Hoje em dia, apesar dos pesares, desfrutamos em nossa sociedade de certas liberdades, como a liberdade de expressão. Podemos expressar nossas opiniões livremente porque vivemos em um país democrático. E sempre fico muito preocupado quando, sob o pretexto de justificar todos os delitos que tomamos conhecimento no mundo político, culpam a democracia, e chegam logo a receitar o remédio pior que a doença - a ruína da democracia.

Contudo, a relação entre democracia, liberdade e os problemas que enfrentamos no exercício destas artes são assuntos para outro dia. Então, acabo aqui.
São Paulo, 27/07/2005

terça-feira, julho 19, 2005

Dia de São Valentim

Aquilo que um ser humano sente, caracterizado pelo intenso desejo de estar, de tocar, de querer o bem a um outro, que é usualmente denominado amor, era o sentimento que o rapaz nutria a uma garota no tempo em que ainda era menino.

Eles se conheceram ainda nos tempos do colégio. Viam-se todos os dias, pois estudavam na mesma classe. Sentavam em carteiras próximas. Uma seguida da outra, mais precisamente. Discutiam sobre diversos assuntos, ou melhor, sobre qualquer assunto. Filosofia, artes, ciência, cultura, política, religião, psicologia. Até sobre futebol discutiam. Suas opiniões se convergiam com pouca freqüência, mas se respeitavam muito. Admiravam-se pelas diversidades que manifestavam. Contudo, ambos, ao jeito de cada um, amavam a Humanidade.

Ela era um anjo, nunca a viam de mal com ninguém. Ele, pessoa sociável e muito agradável, mas genioso às vezes. Ele era um idealista, acreditava que poderia fazer revoluções. Ela, também uma idealista, não acreditava porém fazia revoluções sem que se percebesse. Ela era linda, pele cheirosa, corpo esbelto, olhos ternos, risonha. Ele, um bruto, com medidas disformes, nariz grande, baixa estatura, pernas curtas e grossas, braços finos, senso de humor ácido, não perdoava nem a si mesmo com suas ironias, apenas o olhar magnético. Ele, como dito, ainda era menino. Ela se já fosse ou não mulher, não importava muito para ele.

Percebeu-se fulminantemente apaixonado pela garota. Talvez pelas suas qualidades, talvez pela convivência, ou talvez pelos dois. Fortuitamente, esse sentimento teve uma correspondência. Num certo dia vermelho de outubro, beijaram-se. Fora o dia mais sublime vivido pelo rapaz. Seu espírito enlevara-se, seu peito transbordara alegria, sentira-se nas alturas. Porém, dois dias depois, o rapaz tombou. Um estalo deu na garota e ela não o quis mais. Disse que não queria compromisso, que tinha outras intenções para sua vida. Ele ficou muito atordoado e atônito. Tentou resistir. Insistiu para que ela não o deixasse. Prometeu-lhe amor, fidelidade, segurança. Em vão. Entendeu que ela não queria o que ele tinha para dar. Resignou-se. Não sem muito chorar.

Algum tempo passou. Os caminhos de cada um foram se delineando. O colégio acabou e começaram a se preparar para ingressar numa faculdade. Passaram a se ver muito raramente, mas mantiveram contato. Trocavam telefonemas e algumas vezes se encontravam quando a turma do colégio programava algum passeio nos fins de semana. O assunto predominante naquela época eram as agruras do período pré-vestibular. A pretexto de aliviar um pouco essas tensões, o rapaz convidou a garota para uma visita a uma feira de artes. Era véspera de prova e qualquer coisa valia a pena ser tentada para distrair as mentes quando os momentos cruciais do vestibular estavam próximos. Ela aceitou o convite e por um dia inteiro ficaram a mirar quadros, estátuas e outras peças artísticas. Papearam também. Diversos assuntos, com exceção, é claro, de vestibular. Mas houve um assunto que, embora quisesse abordar, evitou. Eles. O sentimento que ainda mantinha por ela. Julgou que seria repelido novamente e nada falou sobre isso. Porém, houve um instante, dois ou três segundos, quando estavam já no ônibus de volta que, ao chamá-la para falar de um assunto qualquer, leu em seu semblante uma brecha, uma possível receptividade às palavras que sacudiam em sua garganta. Engasgou. Nada conseguiu dizer. Disfarçou e falou outra coisa. Mais tarde, em sua cama, praguejou contra sua covardia e se arrependeu para o resto de sua vida pela oportunidade perdida...

Certo dia, após as provas, conversavam ao telefone e a garota confessou ao rapaz que estava indecisa quanto à carreira que queria seguir. Tinha dúvidas entre a Psicologia e o Teatro, dois cursos que ela havia sido aprovada. Uma dúvida entre uma carreira rentável e outra prazerosa. "Você vai ser atriz!", disse o rapaz. Ele estava certo. Ela se matriculou na faculdade de Artes Cênicas, enquanto ele foi ser jornalista. Ele conhecia bem seu espírito, sabia que sua vida se realizaria nos palcos. Ficou muito feliz pela escolha da garota. Mesmo sabendo que com isso ela se mudaria para outra cidade, o que sepultaria suas esperanças de tê-la novamente algum dia.

Poucos dias antes das aulas universitárias começarem, na época de Carnaval, o rapaz conheceu uma outra mulher. Com ela transou. O menino tornou-se homem. Apesar de ter se sentido em êxtase, de ter apreciado todas as descobertas que acabava de fazer, ele ainda pensava na garota. Era com ela que queria conhecer todas as facetas do amor. Inusitadamente, nesse mesmo dia, ela viajava a Salvador, onde iria desfrutar o feriado. Estava num carro com mais quatro amigos. A poucos quilômetros do destino, o carro perdeu o controle e deu de encontro com as rochas. Deus arrebatou seu anjo e seus infelizes acompanhantes. O então homem chorou novamente, como um menino. Se aquele vermelho dia de primavera fora o mais mágico em sua vida, esse cinza dia de verão foi o mais trágico. Até então, nunca havia perdido alguém tão próximo, alguém que amava. Justo no dia em que conhecia um novo jeito de amar, perdia o amor. O seu amor. Novamente. E em definitivo.

O dia era 14 de fevereiro. Dia Internacional do Amor. Dia de São Valentim.

Escrito em 14/02/2005

domingo, julho 17, 2005

"O amor bate na aorta"

"João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história."

Quadrilha - Carlos Drummond de Andrade

Hoje lembrei desse poema. Um stand off. Alguém aqui já jogou aquele jogo, jogado por e-mail, Diplo? É um jogo de estratégia onde cada jogador é uma potência pré-Primeira Guerra Mundial. O cenário do jogo é a Europa dessa época. Então os jogadores têm suas tropas para movimentar pelo cenário, e há um movimento em específico que acontece quando um exército em A quer ir para o território B, o exército em B quer ir para C e o de C quer ir para o de A. Nessa situação ninguém vai para lugar nenhum. É o stand off. Acho que sou a Maria.

Fui para casa conversar com meu amigo Carlos. E olha o que ele me disse: "sossegue, o amor é isso que você está vendo: hoje beija, amanhã não beija, depois de amanhã é domingo e segunda-feira ninguém sabe o que será." E continuou: "O amor no escuro, não, no claro, é sempre triste, meu filho, mas não diga nada a ninguém, ninguém sabe nem saberá." Como se vê, o meu amigo sabe muito - apesar de dizer que não sabe nada - mas, por outro lado, não te ajuda também.

Então, de Passport e vinho de garrafa de plástico, fui conversar com meus amigos Kurt e Humberto. Disse ao Kurt: "Preciso de um amigo agradável, com um ouvido para me dar!". Kurt me disse: "Eu sou o pior no que faço de melhor e para esse dom me sinto abençoado!". E Kurt começou a discursar e fiquei a escutá-lo por dezenas de minutos...

O Humberto ficou ali escutando-o também. Quieto. Ele nunca me diz nada, o que ele só diz é: "ouça o que eu digo: não ouça ninguém!". E o pior é que eu não ouço. Não sei dizer se seria melhor ouvir alguém mas, até hoje, eu mesmo tentei traçar as rotas que fiz, por mais que parecessem idiotas. Algumas vezes cheguei atrasado, outras vezes andei apressado. É que eu nunca soube que horas eram, nunca soube até que horas os relógios funcionariam. Talvez por isso o andar sem direção.

"Me passa o Passport!". Finalmente o Humberto me disse algo. "Ontem à noite", e continuou ele, "eu conheci uma guria. Já era tarde, era quase dia. Era o princípio de um precipício. Era o meu corpo que caia. Ontem à noite, a noite estava fria. Tudo queimava, mas nada aquecia. Ela apareceu, parecia tão sozinha. Parecia que era minha aquela solidão...". Houve um breve silêncio. Então Kurt passou a discursar novamente. Foram outras dezenas de minutos.

Como já era tarde, meus amigos precisaram ir. Não fiquei só, pois já estava só. Aquela solidão também parecia minha. A Maria ficou para tia, mas eu continuei como o exército que faz o stand off, porém "um exército de um homem só. Sem bandeira e sem fronteiras para defender, no difícil exercício de viver em paz."

"Essa ferida, meu bem, às vezes não sara nunca, às vezes sara amanhã". Era o Carlos. Havia esquecido seus óculos. E foi novamente.

Não dá para esquecer. Amanhã ela faria vinte e cinco.

sexta-feira, julho 15, 2005

"Sobre a Liberdade"

"O que é a Liberdade? Deve-se ter sempre em mente o que é independência e o que é liberdade. A liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem; se um cidadão pudesse fazer tudo o que elas proíbem, não teria mais liberdade, porque os outros também teriam tal poder."

Do Espírito das Leis - Montesquieu

Parafraseio John Stuart Mill no título deste texto porque também tenho a pretensão de discorrer sobre a liberdade, assim como bem fez o referido inglês na obra filosófica de mesmo nome. Entretanto, o conceito de liberdade a que disponho tratar aqui não tem nada de filosofia. Se tiver alguma, é daquelas bem baratas, de botequim de esquina. O caso é que se trata daquilo que entendo hoje por liberdade, baseado na minha experiência de vida.

Apenas para ilustrar o que digo, irei pincelar um pouco sobre a obra de Mill. Em "Sobre a Liberdade", o autor discorre sobre a "liberdade civil", ou seja, sobre "a natureza e os limites do poder que a sociedade legitimamente exerça sobre o indivíduo". Isso porque o objetivo dele era "orientar de forma absoluta as intervenções da sociedade no individual". Para tal, ele estabeleceu um princípio: "a única finalidade justificativa da interferência dos homens, individual e coletivamente, na liberdade de ação de outrem, é a autoproteção". Contudo, como bem frisei anteriormente, do que falarei não tem nada a ver com isso. Irei começar, para que melhor se entenda.

Entendo a liberdade de diversas maneiras. Entendo que haja uma liberdade plena ou, diria melhor, utópica, que seria aquilo de poder fazer tudo o que se quer e de poder não fazer tudo aquilo que não se quer. Só para ilustrar mais essa minha noção de liberdade, posso citar outro filósofo vivido no século 17 que considerava que os homens eram livres por natureza. Thomas Hobbes, inglês filósofo de que trato, disse em sua obra "Leviatã" (aliás, um nome bastante sugestivo e, diria mais, bonito) que essa noção de liberdade que apresentei era o que ele considerava como a forma da liberdade dos homens em seu "estado de natureza". Porém, numa situação onde todos podem tudo, o homem, ser mau por natureza, tornaria seu próprio lobo, e assim a vida seria impossível, pois a vida de todos estaria em risco permanentemente. Daí, os homens transfeririam sua liberdade a um soberano, o Estado, e assim, passariam do estado de natureza para o "estado civil" - onde a vida em sociedade é possível, pois ela seria preservada pelo Estado (o Leviatã). Pois bem, apesar do que disse até agora já ter sido dito antes, não tenho a intenção de construir modelos sobre a gênese do Estado, como era a de Hobbes. Quero dizer apenas que considero a liberdade plena irrealizável, pois ela levaria fatalmente ao fim de quem a possui. A não ser que se queira viver isolado, aí sim, uma tal liberdade tem condições de se realizar. Aliás, essa é uma relação que depreendi da minha experiência de vida: liberdade e solidão estão intimamente ligados. À medida que se queira se compartilhar com os outros, mais da sua liberdade deve ser cedida. Todos têm desejos, porém, freqüentemente a realização de um desejo implica no impedimento da realização do desejo de outro, e esse dilema é constante na vida em grupo. Tomemos um relacionamento amoroso, por exemplo. Um quer assistir um filme, a outra quer sair para dançar. Eis o dilema! Para que o "estado de natureza" não se estabeleça, alguma concessão terá que ocorrer. É algo óbvio, concordo, talvez trivial, mas é nu e cru: se quiser não ficar só, conforme-se em perder parte da sua liberdade.

Essa é uma das visões que tenho da liberdade. Há uma outra que está relacionada ao livre-arbítrio, que é aquilo que Deus nos facultou quando nos arremessou para dentro desse caos que é a vida, ou que é a "faculdade do homem de determinar-se a si mesmo", como se diria em Filosofia. Com o livre-arbítrio os homens passaram a tomar decisões, e tomar uma decisão implica, necessariamente, em fazer uma escolha. Quando se tem a possibilidade de poder escolher algo dentre outras, pode-se dizer que se tem a liberdade de decidir o que é melhor para si. Claro que esse "melhor" é algo relativo, pois pode-se muito bem se escolher o "pior". Contudo, eu diria que essa noção de liberdade é a que realmente se pode realizar, uma vez que é impossível poder fazer tudo o que se quer, como já exposto antes. Nem tudo que se quer é possível de fazer, mas parte desse tudo é possível, assim como há aquilo que não queremos fazer mas podemos optar por não fazê-lo, com algumas exceções, é claro, se não seria a liberdade plena, e essa, é claramente limitada. Novamente uma ilustração sobre isso, dessa vez mais prática do que teórica. Uma certa vez conheci uma garota numa festa e nos beijamos nesse dia. Mantive contato com ela, conforme os dias passavam, e tive outras oportunidades de encontrá-la. Dei-me por apaixonado por ela, então, decidi - e friso esse "decidi" - abrir meu coração. Escrevi cartas de amor, fiz declarações ao telefone, etc. Contudo, havia um grande problema. Como disse, tive oportunidades de encontrá-la que, porém, eram poucas. Nós morávamos em cidades distintas e distantes, e por esse motivo ela, apesar de confessar que também nutria um sentimento por mim, refutou minhas intenções de aprofundar a nossa relação. Notem bem, eu quis uma coisa e tomei uma decisão para conseguir essa coisa, tudo isso porque sou livre, entretanto, por a garota ser igualmente livre, ela decidiu não ter essa coisa, por não a desejar. A forma com que exponho isso pode ser muito formal, admito, mas vivi essa experiência intensamente. Senti todas as emoções dos desdobramentos que tiveram essa minha infeliz relação amorosa. Não me arrependo de nada, pois foi uma experiência edificante. Por isso não se impressionem com a maneira descalorada com que relato isso.

Agora reflitam sobre esse verso da música "Guardas da Fronteira" de Humberto Gessinger. "Acontece que eu não tenho escolha, por isso mesmo é que sou livre". Uma antítese? Uma contradição? Um paradoxo? Como afirmar que se é livre, após todo esse discurso sobre liberdade, quando não se tem escolha, quando só há uma coisa a se fazer? Para mim, Gessinger não está errado. Esse verso é para nos lembrar que tomar decisões implica também em criar a dúvida sobre aquilo que não foi decidido. Como saber se aquilo que não foi escolhido poderia ser melhor do que aquilo que foi? É impossível, pois a liberdade plena não existe! Uma escolha implica em conseqüências que não podem ser desfeitas ou ignoradas, logo, não é possível se remeter à situação anterior à tomada de decisão e tentar a outra alternativa. Por isso mesmo que quando não se tem escolha se está livre. Livre da dúvida. Tem-se, aqui, mais uma perspectiva distinta sobre o que é ser livre.

Vejamos agora a coisa por um viés totalmente oposto. Quando não se é livre podemos dizer que somos presos. Um sujeito quando é punido por um crime tem a sua liberdade privada e a situação que passa a estar é a de "preso". Não seria a consciência uma forma explícita de limitante da nossa liberdade? Oras, quando estamos conscientizados de uma situação ou de alguma coisa, muitas vezes deixamos de tomar certas decisões. É a consciência que nos impede de certos atos. É quando inconscientes que beiramos o "estado de natureza". Quantas vezes, deixados se tomar pela raiva, agredimos outras pessoas. A consciência, por um lado, nos liberta da ignorância quando nos permite o esclarecimento, e por outro, nos prende, pois toma parte da nossa liberdade.

Por fim, gostaria de discorrer sobre um outro tipo de relação a que a liberdade está submetida, e que já foi implicitamente citada anteriormente. Trato da relação entre liberdade e poder. À medida que podemos fazer mais coisas, também podemos deixar de fazê-las, logo, somos mais livres. E eu concluiria: poder é a chave da liberdade. Pela forma como nossa civilização tem se desenvolvido, há dois fatores que contribuem para o acréscimo do poder de alguém: dinheiro e informação. Dinheiro, porque com dinheiro pode-se comprar aquilo que se quer. Com dinheiro eu posso aquilo que eu quero, eu posso aquilo que eu não quero também. Antigamente, para influenciar as pessoas era preciso ter posses, riquezas e uma espada bem afiada. Atualmente, onde tudo é nivelado pelo valor monetário, não se é preciso tanta coisa para ser poderoso. Ter dinheiro é meio caminho andado, para exercer influência sobre os demais. E informação, porque com informação pode-se tomar decisões com mais segurança. Tente sair de casa para ir trabalhar sem saber a previsão do tempo do dia, por exemplo. Se você mora em São Paulo, é possível até que não volte para casa, haja visto às enxurradas que costumam acontecer nessa metrópole, mas na maioria das vezes pode-se voltar molhado ou resfriado. De manhã o tempo está ameno, mas no fim da tarde a temperatura cai, e se você não tem a devida informação, talvez saia de casa sem agasalho ou guarda-chuva e aí já viu né? A verdade é que esse exemplo climático que apresento é bem banal, mas acho que serve bem para ilustrar que é muito melhor decidir por alguma coisa munido de informações do que sem saber nada de nada.

Bom, eis aí o que entendo sobre "essa tal liberdade" (como já cantaram alguns pagodeiros). Não é algo definitivo, pois enquanto estiver vivo, estarei aprendendo novas coisas e revendo meus conceitos. Mas me deu a vontade de discursar sobre a liberdade agora, e confesso que isso é algo que tenho como valor em minha vida. Muitas vezes já me imaginei vivendo os tempos da ditadura ou vivendo em qualquer país onde não se possa se expressar livremente. Temo que talvez não vivesse por muito tempo.

São Paulo, 04/07/2005