quarta-feira, fevereiro 21, 2007

Rotinas

Em um farol que controlava o fluxo dos automóveis de um cruzamento de duas grandes avenidas da cidade, um homem pedia esmolas.

Olha, estou limpo... Levantou a puída camiseta e exibiu o abdômen, enquanto o vidro do automóvel se levantou automaticamente. Enfiou uma das mãos no bolso da calça jeans. Trinta centavos. Dá para comprar dois pãezinhos. Mas e o leite? Meu moleque não toma leite há mais de semana. Por favor, senhora, não teria alguma moeda para me dar? Muito obrigado, Deus lhe abençoe... O bolso continuou com as três moedinhas de dez centavos. Deus me abençoe. Eu vejo tanto carro passando aqui, tanta gente bonita, bem vestida, devem ter problemas, é claro, quem não tem problemas? Eu tenho problemas. Não consigo arrumar emprego, nem arrumar o telhado lá de casa. Quando chove, é muito ruim para eu e meu filho dormirmos secos, mesmo estando debaixo do viaduto, a água escorre e cai sobre o telhado e também sobre a gente. Eu sei arrumar o telhado, mas eu preciso de algum material para o conserto, mas eu preciso também dar comida pro moleque. Se sua mãe estivesse viva, ela também poderia me ajudar. Eu acho que é mais fácil para as mulheres conseguir esmola, os motoristas não pensam que uma mulher vá assaltá-los. Olha, eu não vou lhe assaltar, eu só queria algum dinheiro para comprar um litro de leite para meu menino... O farol abriu e o carro partiu sem deixar moeda. Eu já pensei em assaltar. Eu não consigo emprego, como vou conseguir dinheiro para sobreviver? Já ouvi os políticos falarem em programas de transferência de renda. Nunca vi melhor programa do que o roubo. Mas eu não consigo. Acho que sou um covarde. Tenho medo de revólver. Poderia uma vez arrumar um, mas eu tinha que comprar remédios para minha mulher. Ela chorava tanto de dor, e o moleque chorava tanto com a agonia da mãe, como é que eu ia assaltar sem saber atirar? Como é que eu ia deixar minha família sofrendo daquele jeito? Eu já pressentia que minha mulher não ia agüentar, eu teria que ficar sozinho com o menino. Eu o amo muito, eu poderia ser morto pela polícia ou pelos motoristas, muitos andam armados. Eu tenho um baita medo de morrer. Sou mesmo um medroso, um baita de um covarde...

Em uma dessas duas grandes avenidas, um carro aproximava-se do cruzamento que acabara de se fechar.

Ai meu Deus, qualquer dia desses é a minha vez. Qualquer dia desses um se irrita e saca um revólver. Sempre aqui pedem dinheiro e sempre digo: "puts, cara, hoje não tenho!". Eu até tenho dinheiro, mas, puts, ter que pegar a carteira na bolsa, abri-la, dar o dinheiro, guardar a carteira, olha quanto tempo vulnerável? O cara pode aproveitar a brecha e me pegar. E eu sou um covarde, tenho um baita medo de morrer, se o cara saca uma arma o que eu faço? Eu vejo na tevê, escuto no rádio, leio no jornal, todo o santo dia, casos de violência no trânsito. Não é possível, um dia desses chega a minha vez. Passo todo dia aqui, esses caras já devem ter marcado a minha fuça. E o trânsito desta cidade é permanentemente congestionado, não tem nem como correr. Parou no farol, já era, só se sai quando não tiver carro na frente. Mas se me vem um de noite, com pista livre, ah, passo por cima, passo por cima. À noite, todos os gatos são pardos, todos os faróis são verdes, e quem chegar perto é suspeito. Mas de dia... Por isso que é olho nos retrovisores, olho nos lados, olho no semáforo. Vermelho. Olho nos retrovisores, olho nos lados... Um homem se aproximou levantando a puída camiseta e exibiu o abdômen. Ai meu Deus, não consegui levantar o vidro, chegou a minha vez...

- Olha, estou limpo! O senhor não tem algum trocado...

O farol abriu. O motorista percebeu a mudança do farol e olhou para frente.

- Puts, cara, hoje não tenho...

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