quarta-feira, novembro 16, 2005

Auto-psia

Não vou viver para sempre, nem morrer a toda hora, porém, morri uma vez. Estava doente, definhava. Demorei a perceber que morria e quando morri. A consciência do fato foi estarrecedora. Fiquei de luto.

Eu morri. Morri! E não compreendia o que me aniquilara. E o fedor da carne em putrefação enturvava ainda mais a minha capacidade de discernir a situação. Mas assim fiquei. Apodrecendo, enlutando e enjoando, enquanto jazia e nada fazia. Precisava de ajuda. Tomei uma resolução. Autópsia.

"Tem certeza de que é isso que quer?", perguntou-me o legista. Certeza absoluta. Desde que descobri que o Universo era infinito e eu não, nunca me acovardei ante a iminência da verdade. Vai fundo. Abra-me, disseque-me, órgão por órgão, osso por osso, até a medula, e me mostre.

A revelação. Causa mortis: infecção generalizada. Uma chaga no meio do peito que tentei fechar, mas só fiz infeccionar. A infecção tomou meu corpo, minha mente e faltou pouco para tomar meu espírito. Não tomou porque, para não ser corrompido, o espírito desencarnou. Fiquei pasmo, senti-me triste, deprimi-me, mas aceitei a verdade. Doeu muito, mas só no começo. No fim, acabei suportando.

Enfim, a ferida cicatrizou. Dói um pouquinho ainda, quando o tempo esfria. Uma marca daquele que se foi, para que não seja esquecido. Mas fui enterrado. Não havia motivos para continuar sem funeral após ser dissecado e estar revelado. Descansei em paz.

Eu, que tenho medo da morte, morri para descobrir que não tenho medo das mortes. Pois na vida, não se morre a toda hora, apesar de se morrer sempre, mas se morre algumas vezes. A vida é singular, já a morte é plural. E toda morte é uma oportunidade de renascer, de poder recomeçar. Não do zero, mas com alguma experiência, o que já é alguma coisa. É muita coisa, para dizer a verdade.

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