terça-feira, maio 23, 2006

O que é virilidade?

(de "Crônicas da Guerra Civil")

"Haroldo, você não é viril!", aquela frase ainda ressoa em sua mente, dita quando ela lhe comunicou que o deixaria.

Haroldo era um pacato comerciante, dono de uma doceira, bem sucedido até. Tinha um corpo franzino, uma barriguinha proeminente e era asmático. Tinha também um dom incomum para a Matemática. Preparava-se, naquele ano, para ingressar numa faculdade quando recebeu a fatídica notícia que o desestabilizou.

Jorge havia se mudado há pouco tempo no bairro. Era um homem robusto, vistoso e tinha uma farda. Era soldado da polícia. E parecia que ele sabia descobrir quais as mulheres que tinham fetiche pelo seu distintivo. E ele gostava muito quando elas o valorizavam por isso.

Alice era uma dessas mulheres. Ela era órfã desde muito jovem, e muito jovem decidiu-se sair da casa da avó, que a cuidou desde a morte dos pais num acidente de carro, para casar-se com Haroldo, homem que ela julgou poder lhe dar a proteção necessária àquele momento.

Com sua estabilidade financeira, Haroldo poderia proteger Alice materialmente, mas nunca pôde protegê-la psicologicamente. A flacidez de seus braços, sua fragilidade física e de saúde eram insuficientes para fazer Alice sentir-se segura. Ela sentia medo e vergonha de andar ao seu lado e ela não sentia prazer em dormir sob seus braços.

E num dia desses, Alice avistou o cassetete de Jorge, e Jorge farejou a insegurança de Alice. Eram jovens, bonitos e se complementavam. A insegurança de um combinou perfeitamente com o exibicionismo de outro. E nessa, o pobre asmático Haroldo dançou...

Desde que Alice o chutou de sua vida, Haroldo desvirtuou-se, tornou-se bandido. Fechou seu comércio e passou a viver de assaltos. Começou assaltando outros comércios iguais ao que possuía, em carreira solo. Depois, num caminho inverso ao de muito artistas, passou a assaltar bancos e a trabalhar em bando. Tornou-se o líder de uma ousada quadrilha e ainda se deu ao luxo de estudar Engenharia. Para manter-se mais preparado a burlar as parafernálias de segurança que eram criadas e para ter direito a cela especial em caso de ser pego, é claro.

Haroldo e sua quadrilha eram independentes, não eram subordinados a nenhuma organização criminosa. Mas ele tinha contato com alguns dirigentes do crime organizado e recebeu a informação de que um grande ataque seria realizado contra alvos policiais. Decidiu participar por conta própria.

"Viril?! Viril! O que é virilidade? É ter corpo musculoso, usar uma farda, andar de arma e cassetete e correr atrás de bandido? Sua bandida, vai ver o que é virilidade de verdade!", dizia Haroldo consigo mesmo momentos antes de viver os momentos mais cruciais de sua vida.

Haroldo estava de campana, a poucos metros da casa de Jorge, quando o avistou ao longe. Ele estava à paisana e carregava uma mochila onde guardava sua farda e equipamento. Haroldo aproximou-se de Jorge e apontou-lhe uma quarenta e cinco em sua testa. "Essa é pelo chifre que me pôs, canalha!"

E Haroldo se foi, carregando consigo a mochila de Jorge.

Após tal dia, o paradeiro de Haroldo tornou-se incerto. Apenas se sabe que dissolveu a quadrilha e evaporou-se. Sem seu genial líder, os demais capangas foram pegos logo na primeira tentativa de assalto. Haroldo hoje é procurado pela polícia em todo o território nacional.

E Alice hoje é mulher de malandro. Descobriu que apenas nos braços de um chefe de traficantes teria satisfeitas suas necessidades materiais, psicológicas e sexuais. Enfim, parece que ela conseguiu se reajustar. Da vida passada, apenas restou a frase que ainda insiste em grudar em sua mente, lida em uma carta que chegou do Correio alguns dias depois do assassinato de Jorge. Veio junto de um distintivo policial e dizia: "Isso é ser viril para você?".

4 comentários:

Anônimo disse...

... amanhã eu comento esse, deu minha hora... rs

Anônimo disse...

Muito foda, parabéns cara!

Anônimo disse...

Incrível! Digna de muitos comentários elogios. Quem lê profundamente consegue compreender a crítica construtiva que se faz ao longo do texto. Muito bom!

Unknown disse...

Nossa...boa mesmo Parabens