terça-feira, julho 19, 2005

Dia de São Valentim

Aquilo que um ser humano sente, caracterizado pelo intenso desejo de estar, de tocar, de querer o bem a um outro, que é usualmente denominado amor, era o sentimento que o rapaz nutria a uma garota no tempo em que ainda era menino.

Eles se conheceram ainda nos tempos do colégio. Viam-se todos os dias, pois estudavam na mesma classe. Sentavam em carteiras próximas. Uma seguida da outra, mais precisamente. Discutiam sobre diversos assuntos, ou melhor, sobre qualquer assunto. Filosofia, artes, ciência, cultura, política, religião, psicologia. Até sobre futebol discutiam. Suas opiniões se convergiam com pouca freqüência, mas se respeitavam muito. Admiravam-se pelas diversidades que manifestavam. Contudo, ambos, ao jeito de cada um, amavam a Humanidade.

Ela era um anjo, nunca a viam de mal com ninguém. Ele, pessoa sociável e muito agradável, mas genioso às vezes. Ele era um idealista, acreditava que poderia fazer revoluções. Ela, também uma idealista, não acreditava porém fazia revoluções sem que se percebesse. Ela era linda, pele cheirosa, corpo esbelto, olhos ternos, risonha. Ele, um bruto, com medidas disformes, nariz grande, baixa estatura, pernas curtas e grossas, braços finos, senso de humor ácido, não perdoava nem a si mesmo com suas ironias, apenas o olhar magnético. Ele, como dito, ainda era menino. Ela se já fosse ou não mulher, não importava muito para ele.

Percebeu-se fulminantemente apaixonado pela garota. Talvez pelas suas qualidades, talvez pela convivência, ou talvez pelos dois. Fortuitamente, esse sentimento teve uma correspondência. Num certo dia vermelho de outubro, beijaram-se. Fora o dia mais sublime vivido pelo rapaz. Seu espírito enlevara-se, seu peito transbordara alegria, sentira-se nas alturas. Porém, dois dias depois, o rapaz tombou. Um estalo deu na garota e ela não o quis mais. Disse que não queria compromisso, que tinha outras intenções para sua vida. Ele ficou muito atordoado e atônito. Tentou resistir. Insistiu para que ela não o deixasse. Prometeu-lhe amor, fidelidade, segurança. Em vão. Entendeu que ela não queria o que ele tinha para dar. Resignou-se. Não sem muito chorar.

Algum tempo passou. Os caminhos de cada um foram se delineando. O colégio acabou e começaram a se preparar para ingressar numa faculdade. Passaram a se ver muito raramente, mas mantiveram contato. Trocavam telefonemas e algumas vezes se encontravam quando a turma do colégio programava algum passeio nos fins de semana. O assunto predominante naquela época eram as agruras do período pré-vestibular. A pretexto de aliviar um pouco essas tensões, o rapaz convidou a garota para uma visita a uma feira de artes. Era véspera de prova e qualquer coisa valia a pena ser tentada para distrair as mentes quando os momentos cruciais do vestibular estavam próximos. Ela aceitou o convite e por um dia inteiro ficaram a mirar quadros, estátuas e outras peças artísticas. Papearam também. Diversos assuntos, com exceção, é claro, de vestibular. Mas houve um assunto que, embora quisesse abordar, evitou. Eles. O sentimento que ainda mantinha por ela. Julgou que seria repelido novamente e nada falou sobre isso. Porém, houve um instante, dois ou três segundos, quando estavam já no ônibus de volta que, ao chamá-la para falar de um assunto qualquer, leu em seu semblante uma brecha, uma possível receptividade às palavras que sacudiam em sua garganta. Engasgou. Nada conseguiu dizer. Disfarçou e falou outra coisa. Mais tarde, em sua cama, praguejou contra sua covardia e se arrependeu para o resto de sua vida pela oportunidade perdida...

Certo dia, após as provas, conversavam ao telefone e a garota confessou ao rapaz que estava indecisa quanto à carreira que queria seguir. Tinha dúvidas entre a Psicologia e o Teatro, dois cursos que ela havia sido aprovada. Uma dúvida entre uma carreira rentável e outra prazerosa. "Você vai ser atriz!", disse o rapaz. Ele estava certo. Ela se matriculou na faculdade de Artes Cênicas, enquanto ele foi ser jornalista. Ele conhecia bem seu espírito, sabia que sua vida se realizaria nos palcos. Ficou muito feliz pela escolha da garota. Mesmo sabendo que com isso ela se mudaria para outra cidade, o que sepultaria suas esperanças de tê-la novamente algum dia.

Poucos dias antes das aulas universitárias começarem, na época de Carnaval, o rapaz conheceu uma outra mulher. Com ela transou. O menino tornou-se homem. Apesar de ter se sentido em êxtase, de ter apreciado todas as descobertas que acabava de fazer, ele ainda pensava na garota. Era com ela que queria conhecer todas as facetas do amor. Inusitadamente, nesse mesmo dia, ela viajava a Salvador, onde iria desfrutar o feriado. Estava num carro com mais quatro amigos. A poucos quilômetros do destino, o carro perdeu o controle e deu de encontro com as rochas. Deus arrebatou seu anjo e seus infelizes acompanhantes. O então homem chorou novamente, como um menino. Se aquele vermelho dia de primavera fora o mais mágico em sua vida, esse cinza dia de verão foi o mais trágico. Até então, nunca havia perdido alguém tão próximo, alguém que amava. Justo no dia em que conhecia um novo jeito de amar, perdia o amor. O seu amor. Novamente. E em definitivo.

O dia era 14 de fevereiro. Dia Internacional do Amor. Dia de São Valentim.

Escrito em 14/02/2005

Um comentário:

Anônimo disse...

(Tá difícil acompanhar o ritmo desse blog, heim?! Não reclamo nunca mais... rs)
Bem, qualquer coisa que eu diga será muito idiota, pq verídico ou ñ, este foi um dos textos mais lindos q já li. Me entreguei completamente e até pausei o Windows Media Player (que coincidentemente tocava "Eu amo mais você" do Catedral).
Estou especialmente sem palavras pq me lembrei de alguém muito especial q se foi... e num inverno tão melancólico tudo parece mais pesado.