domingo, agosto 07, 2005

Temporal itinerante

"Quando você foi embora
O céu deu de escurecer
Será que eu fiquei chorando
Parece que vai chover"

Morena de Endoidecer - Djavan

Choveu. Bastou ela entrar no ônibus, ele recuar uns passos até o banco em frente à plataforma de embarque, o céu se fechou e desabou. O temporal surgira de maneira tão instantânea que o rapaz ficou impressionado. A água caía forte, impulsionada pela ventania. Em segundos, boa parte do terminal de embarque estava alagado pela água que descia pelas calhas do telhado. Mesmo estando num local coberto, os demais usuários do terminal rodoviário eram açoitados pela água cadente que, graças aos ventos, possuía uma formidável mobilidade. Ele viu a aflição dessas pessoas que buscaram ocupar os poucos espaços menos molhados. Percebeu, então, que se molhava um pouco, mas permaneceu no mesmo local. Não era tanta água que caía sobre ele.

"Isso não é uma chuva, é um pranto", pensou. Tinha seu olhar voltado para a direção onde estava o ônibus em que a moça acabara de subir, mas na verdade mirava o céu, cinza pelas nuvens, apesar de ainda ser dia. Já eram dezenove horas, mas o horário de verão e o próprio verão permitiam que a luz diurna ainda imperasse naquele momento. Mirou o ônibus. Os vidros escurecidos das janelas do veículo impediam que ele enxergasse onde ela estaria sentada, se já estivesse sentada. O motor partiu e o ônibus também. Quis acenar em despedida, mas não se mexeu. Não sabia se ela estava olhando para ele naquele momento. Apenas acompanhou com o olhar e o pescoço sua saída.

"Morena de endoidecer", veio o verso da música em sua mente. Porém, não conseguia lembrar o restante. Parecia que para ele a canção só tinha esse verso. Nem se lembrava se o verso fazia parte do refrão. Sentou. Abriu a mala e puxou uma revista com matérias sobre as guerras de Alexandre, o Grande. Alguns respingos caíam na revista. Praguejou silenciosamente, mas percebeu que para continuar a ler teria que ser ali mesmo. Era o local que menos se molhava.

"Rei dos Reis. Conquistado o Egito, Alexandre não voltou para casa. Ele preferiu rumar para a Ásia, onde iniciou uma caçada humana - cuja presa era Dario III. 'Se te consideras um rei', escreveu o macedônio ao imperador da Pérsia, 'prepara-te para a luta e não fujas, pois eu te perseguirei aonde quer que vás.' Os inimigos voltaram a se defrontar em 331 a.C., em Gaugamela (atual Tell Gomal, no Iraque). Dario fugiu pela segunda vez e acabou sendo assassinado por um de seus próprios oficiais. Em Susa, uma das antigas capitais do império, Alexandre sentou-se triunfalmente no trono dos soberanos persas. Agora ele era o 'Rei dos Reis', senhor de gregos e dos asiáticos. Tinha apenas 25 anos.'", subitamente estancou a leitura. Sentira um déjà vu. Levantou-se. Olhou ao redor. Virou o pescoço de um lado a outro, girou em seu próprio eixo. Procurava algo. Como apenas tinha desse algo uma impressão, não sabia exatamente o que procurava. Nessa infrutífera vasculhada, encontrou um gato preto que se escondia embaixo de um dos bancos a seu lado. Parecia tremer, decerto por estar molhado pelo temporal. Gatos odeiam se molhar. Deu que a descoberta do pequeno felino o fez lembrar como fora o seu dia. Vieram à mente a lembrança dos leões, pumas e panteras que ele e a moça itinerante viram no zoológico da cidade. Lembrou também a saborosa pizza que ambos comeram no almoço. Comeram com tanta avidez que não sabiam se a comida estava tão deliciosa, por ser de fato deliciosa, ou se pela fome de ambos. Afinal, ficaram a ver bichos a manhã inteira, sem nada beliscar. Quer dizer, nada ingerível. Não pôde deixar de se remeter ao filme que assistiram após o almoço. Closer - Perto Demais. Riu sozinho ao se lembrar do próprio comentário feito à garota sobre o filme, quase nada visto: "Acho que o filme foi bom por causa do título! Realmente ficamos perto demais um do outro!". E riu gostosamente, como na ocasião. Enquanto o sorriso ainda ecoava, reteve a imagem do rosto dela rindo consigo em sua frente. Pôde rever seus olhos castanhos e até sua mancha de nascença na têmpora esquerda. Quis se enaltecer em felicidade. Quis reconhecer sua paixão por ela. Suspirou.

"Por que eu só conheço gente assim?", indagou-se, mas na verdade inquiria a Deus, se talvez acreditasse nele. Então, seu ônibus chegou. O rapaz também era itinerante. Fechou a revista e guardou-a na mala. Conferiu sua passagem e subiu no ônibus. De volta para seu destino.

Escrito em 10/02/2005

Um comentário:

Anônimo disse...

18/08/05:
Ivo, não parei de ler um só instante, e imagina, estou no ponto de ônibus do viaduto D. Paulina, no centro de São Paulo. O relógio do Bradesco no alto do prédio à minha frente marca 18:57 / 19° (já caíram 2° desde que cheguei aqui, há cerca de 20 minutos atrás - sim, o trânsito está horrível!). Esse ventinho, dizem, anuncia chuva. Um pouco à minha frente tem um homem falando de política. Ele começou criticando a demora do ônibus e conseguiu chegar até o Planalto... e eu estou aqui, inquirindo-me como você.
Meus questionamentos parecem-se com os seus: por que chego tão perto e não consigo tocar nada? Parece o itnerário de um ônibus, sempre linear, repetitivo.