quinta-feira, novembro 03, 2005

Oceano íntimo

"Você é profundamente ligado à sua casa e família."
- Aleatória mensagem de sorte do Orkut

Meia noite e trinta e quatro minutos de uma dia qualquer que se iniciava. Pelo menos convencionalmente, já que o dia começa quando o sol está para raiar e um mundo de gente desperta, iniciando mais uma jornada em suas cíclicas vidas. Para o sol raiar, ainda faltariam algumas horas - apesar de que em algum lugar do planeta o sol raiava naquele momento. Porém, para o rapaz, esse não era um dia qualquer...

Existe uma expressão de uso popular: "o bom filho à casa torna". Naquele momento, o rapaz estava retornando à casa onde passou a infância, depois de uns anos fora. Chegou com seu carro e alguns pertences pessoais que ali cabiam: roupas, livros, um cobertor, alguns documentos, seu cachimbo e uma bússola. Veio também o seu gato de estimação, que dormia engaiolado no banco do passageiro. Guardou o carro na garagem e iniciou o descarregamento das coisas para dentro da casa.

A casa estava vazia. De pessoas. As mobílias estavam ali. As mesmas que compuseram sua infância. Talvez uma coisa diferente aqui ou acolá, como um eletrodoméstico mais moderno, mas, no geral, tudo era o mesmo. Foi rápido o descarregamento. Eram poucas as coisas, afinal. O grosso de seus pertences viriam depois. Um caminhão iria trazer o restante de suas roupas, livros e outros pertences como uma televisão, uma escrivaninha, um computador, um armário e uma estante.

Abriu a gaiola onde o gato dormia. O bichano despertou, saiu, bocejou e espreguiçou, olhou para a cara do rapaz e desviou o olhar para outro canto em seguida, num típico gesto felino de desdém.

- Está com fome, moleque? - e o gato deitou sobre as quatro patas - Sem fome? Milagre!

Estava sem sono. Ligou a TV e sentou na poltrona. Zapeou até parar num filme dessas sessões da madrugada. Sentiu vontade de pitar o seu cachimbo. Foi buscá-lo.

- Folgado! Sai daí! Mal chegou já quer dominar os melhores lugares? - e empurrou o gato, expulsando-o da poltrona. Sentou novamente e, enfim, acendeu o cachimbo.

Percebeu que passava um filme de época. Não reconheceu o filme, mas não sabia se já o tinha assistido. Manteve os olhos na tela, porém não via mais o filme. Conforme cachimbava, sua mente se esfumaçava com nebulosas lembranças do passado que passavam em sua frente.

- Veado! Isso mesmo, você é um veado! Fica dormindo na casa dos seus amigos para quê? - rasgou a voz do pai na sala. A mãe e o irmão também ali estavam. O garoto se encontrava parado na escada que dava acesso ao andar superior. A mãe voou no pescoço do pai.

- Não fale assim, seu bêbado! - esbravejou - o irmão intercedeu e apartou os dois. O garoto continuava inerte.

- Mãe, deixa... - de súbito, falou - Não vale a pena. O que ele fala não me atinge. Isso não me ofende.

Subiu as escadas e foi para o quarto. Ficou várias semanas sem sequer olhar na cara de seu pai.

- Vai embora! Vai embora! - tum, tum, tum, e batia a cabeça na parede - Me deixa em paz!

O menino estava em pânico. Ouvia na sua mente a terrível voz que o atormentava desde os seis anos de idade, e que dizia: "Você vai morrer um dia! E não há nada que você possa fazer para evitar isso!". Ele não via ninguém, apenas ouvia. Era sempre assim. Entrava em pânico. Às vezes chorava. Muitas vezes fazia um esforço descomunal para se conter, quando estava na presença de outras pessoas. E como sempre, após a descarga de adrenalina que seu corpo recebia do cérebro, acalmava-se. Mas dessa vez sua vista direita enxergou avermelhado. E a lágrima que escorreu para o canto de sua boca não era só salgada.

Mordeu o bico do cachimbo. Já fazia muito tempo que não se descontrolava ao encontrar o Medo da Morte. Quase o tabu fora quebrado. Parece que voltar a essa casa o deixou bastante sensível, no entanto, conseguiu se controlar bem. Subitamente se levantou, respirou fundo e foi até a cozinha beber água.

Voltou. Quando iria se sentar novamente, deu pela falta do gato. Vasculhou pela sala e nada.

- Mefisto?! Cadê você, seu diabo?

Saiu da sala para o corredor de fora e notou a porta do escritório de seu pai entreaberta. Lá estava Mefisto.

- O que você está xeretando aí, moleque? - notou que o gato cheirava o que parecia ser um alçapão - Epa...

Nunca houve um alçapão nessa casa! O que haveria ali? Tentou imaginar o que pudesse estar guardado ou como aquilo fora construído, mas sua curiosidade logo o fez abrir a tampa. Ficou boquiaberto.

O cheiro era de maresia. Como estava escuro, procurou algo para iluminar embaixo, achou uma lanterna. Percebeu que do nível do escritório para baixo, um metro era vazio, o resto era água. Muita água. Muita água mesmo. Um oceano.

(Talvez continue...)

16/06/2005

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