segunda-feira, maio 17, 2004

Uma odisséia paulistana

Já é manhã em mais uma sexta-feira na cidade de São Paulo. As sextas-feiras paulistanas, como todos os demais dias da semana, são de árdua labuta para milhares de pessoas. Homens e mulheres, jovens, maduros, alguns já idosos, brancos, negros e mestiços, migrantes, imigrantes e paulistanos “da gema”. Mas para alguns desses trabalhadores, a sexta-feira é um dia especial, pois representa o prenúncio do fim de semana, que é sempre uma expectativa de prazer e descanso. Pelo menos até a chegada do domingo. Este é o caso de Ulisses, que no momento viaja, como se fosse uma sardinha enlatada, pelo metrô rumo ao local do seu emprego. Ulisses é um humilde rapaz de 19 anos que acabara de ser efetivado em uma empresa do ramo da Tecnologia da Informação na função de programador de sistemas de computador. Uma empresa que possui clientes pelo Brasil e América Latina e que simboliza toda a opulência da sofisticada economia paulistana.

Enquanto viaja, Ulisses pensa sobre o dia seguinte, sábado, dia em que irá ao estádio Palestra Itália, para assistir a uma partida do time do seu coração, o Palmeiras, uma paixão que nutre devido a sua descendência italiana. Será amanhã que o Palmeiras sacramentará sua ascensão à divisão de elite do futebol brasileiro. “Lugar em que nunca deveria ter saído”, é o que sempre pensa quando durante todo o ano tocava-se no assunto futebol e sobre o vexatório rebaixamento ocorrido no ano anterior. “Hoje terei o ingresso em mãos. Foi muita sorte o Moacir ter conseguido comprá-lo”. E o metrô segue viagem, conduzindo Ulisses e um bom punhado de gente, toda amontoada, de pé, em seus vagões.

Voltando à sexta-feira, que é especial para Ulisses, pois é quando ele pode se encontrar com Débora, sua namorada. Por causa de seus estudos e dos dela, só se encontram nos fins de semana. Às vezes, como é o caso de hoje, também às sextas, após a aula, quando têm algum programa para varar a noite.

- Estação Sé! Por favor, queiram desembarcar pelo lado esquerdo do trem. – diz uma voz metálica.

Logo, Ulisses é arrastado pela turba que desce na estação. Ulisses também fica por ali, pois tem ainda que tomar mais dois trens para ir à estação Trianon, seu destino naquele momento.

Finalmente, chega no escritório. O dia é difícil como vinha sendo os anteriores. Tem muitos programas de computador para desenvolver, e como era praxe, o prazo para concluí-los era curto. Mas o Moacir trouxera o ingresso. Seu sábado estava garantido e o ingresso guardadinho em sua carteira. “Ah, corinthianada, podem se preparar! Ano que vem é o Verdão que está de volta!”, e Ulisses ria consigo mesmo.

Logo o expediente acaba. Cata a sua mala e volta aos subterrâneos. Vai agora à estação Tiradentes, para assistir a mais uma aula do curso de Tecnologia da Informação da Faculdade de Tecnologia de São Paulo. Terá pela frente um professor daqueles bem sonolento. Mas não faz mal, até o fim da aula, Ulisses se deliciará com a imaginação do calor do corpo de Débora, da pele dela na sua, da sua língua na dela. Iriam a uma danceteria no bairro do Tatuapé com um outro casal amigos de Débora, logo mais. Mesmo não gostando muito de dançar, estar com sua garota valia a pena...

- Acorda, bicho-preguiça!

É o Renato, seu colega. A aula já acabara e Ulisses pegara no sono. Mal desperta, levanta-se, junta os cadernos e dispara para o metrô novamente. Ainda precisava ir para casa, no bairro da Penha, na periferia de São Paulo, tomar um banho e se arrumar para Débora.

A noite fora maravilhosa, apesar de ter que dançar um pouco. Mas ele beijou Débora muito. E apertou-a também. Ulisses adorava sentir o corpo dela contra o seu. É claro que também houve alguns inconvenientes, como alguns outros moços que passavam cantadas em sua garota. Afinal, é uma bela morena, de corpo bem delineado e de um bumbum polpudinho, do jeito que Ulisses gosta. Mas Débora não deu bola para eles, ela também só tinha olhos para aquele italianinho. Deixou Débora na casa dela após, é claro, de dar aquele beijo de despedida. E então rumou para sua casa. Já estava bem cansado, afinal era sábado de madrugada e Ulisses já era capaz de jurar que escutava sua cama o chamando.

Porém, a alguns quarteirões de sua casa, ele percebe que está sendo seguido por um outro rapaz. Não olha para trás, mas aperta o passo. Logo a frente, nota mais outros dois que, percebendo um sinal feito pelo que estava atrás de si, saltam para cima de Ulisses, jogam-no contra o chão e imobilizam-no.

- Aí boyzinho, é o seguinte, a gente tá na nóia, sacou? A gente vai te rapelar e é melhor não espernear.

A rua estava mal iluminada e como ninguém estava por ali, ninguém testemunhou os três tomarem a jaqueta, os tênis, as calças, a carteira e o celular de Ulisses. Provavelmente iriam trocar tudo por pedras de craque ou por pó de cocaína. Ulisses acabara de ser vítima de mais uma das perversidades que o tráfico de drogas provoca na sociedade. E antes de deixá-lo, um dos três ainda lhe deu um tapão na nuca que o fez inclinar para a frente.

Ulisses corre para sua casa, está só de cuecas e camiseta. Está meio frio e mais o cansaço só o fazem querer chegar em seu quarto, cair na cama e fingir que nada daquilo aconteceu. Além de ser roubado e de ser humilhado, perdera o ingresso para o jogo do Palmeiras, que não iria mais poder assistir, pois já não havia mais outros a serem vendidos. Havia os que estavam nas mãos dos cambistas, mas esses, o seu dinheiro não conseguiria pagar. Nos poucos instantes que passam até sua casa, no entanto, seus pensamentos se voltam para aqueles três. Sente um enorme desejo de vingança e deseja matá-los. Mas logo se deprime, pois sabe que se arruinará com um ato desses, sabe que será uma grande desgraça para sua vida e de sua mãe. Então, sente-se impotente.

Quando em casa chega, encontra sua mãe na sala, ainda acordada. Ela havia percebido que ele chegara e o esperava de pé, na sala. Ela vê o estado em que Ulisses está, mas não diz e nem pergunta nada, apenas abraça seu filho. Viúva a sete anos, seu filho é a única pessoa que tem no mundo, e ela pressentira que algo de ruim aconteceria hoje. A velha intuição de mãe. Mas agora está aliviada. Seu tesouro não lhe fora tomado. Ulisses também abraça sua mãe. E como se, ao abraçá-la, passasse a sentir toda a agonia e pesar que ela havia sentido, começa a chorar, copiosamente.

Crônica escrita em 28/11/2003 para concorrer ao Concurso 450 de São Paulo.

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