quarta-feira, março 12, 2008

O 10000º dia

Ao chegar hoje no escritório, o computador me alertou: "Hoje é seu 10000º dia de vida!" Sorri grande. Até já havia me esquecido, quando um dia desses eu desenvolvi um programinha bobo de cálculo de diferença entre datas e, para testá-lo, calculei a diferença entre aquele dia e a data do meu nascimento, notando que o resultado era bem próximo de 10000, por volta de 9900, não me lembro. Fiquei surpreso por saber que estava para assistir ao nascer do sol uma quantidade tão redonda assim. Calculei qual seria o 10000º dia, 12/03/2008, e anotei o evento na agenda do Outlook, pois fatalmente eu me esqueceria, e um dia tão distinto como esse passaria em branco. E para não passar em branco, decidi escrever esta crônica para registrar e comemorar o dia.

10000. Dez mil... Não sei como se escreve o ordinário de dez mil (décimo milésimo?!), mas acho-o um número bonito - cem mil seria igualmente bonito, mas acho que não chegarei até lá; afinal, não sou nenhum jacarandá, ou qualquer outra dessas árvores portentosas que estão lá no meio da Amazônia por mais de século - e acho dez mil um número grande, respeitoso. Se eu dissesse tenho 27 anos e tantos meses, alguém diria: "Ah, você ainda é novo!" (Ou não!). Mas se eu digo: "Tenho 10000 dias de vida!" 10000 dias de experiência sobre a Terra, ah, isso soa diferente, é mais impositivo. Primeiro porque até o fulano processar na cachola a conta dez mil sobre trezentos e sessenta e cinco, o queixo dele já caiu e ele soltaria alguma interjeição parecida com "oh!" - a não ser que seja algum superdotado que consiga calcular instantaneamente contas de dividir de cabeça e perceba que eu ainda nem passei pela tal crise dos trinta.

E por falar em crise dos trinta, não sei se eu passarei por essa, mas há uma crise gravíssima pela qual passo atualmente, deixa eu ver se consigo explicar. Desde sempre eu acreditei que estava vivo para fazer alguma coisa de importante, alguma coisa que fosse mudar o rumo da humanidade e ficasse registrado para sempre nos anais da História. Desde sempre eu acreditei que estava vivo para viver este grande acontecimento e que, conseqüentemente, minha vida teria um sentido, uma razão de ser, e que por isso eu estaria imune a qualquer outro acontecimento que pudesse interromper indevidamente a minha vida. Ou seja, acidente, violência, doença fatal, nada disso me afetaria, porque minha vida teria que seguir o seu curso para o tal grande acontecimento, que eu não sabia qual seria, mas sabia que aconteceria. E por conta disso eu sempre tentei ser grande e fazer coisas grandes, muitas coisas grandes. Tentei ser jogador de futebol, advogado, diplomata, cientista social, escritor, tentei ser até jornalista. Nada consegui. Só um vazio. Um imenso vazio que ficava aqui dentro e que a muito custo descobri que era por causa do meu medo de morrer. Simples assim, para afastar o Medo da Morte de mim, impus-me que ainda não morreria, porque ainda não havia feito tudo o que vim fazer por aqui. Porém, agora eu sei que eu não estou aqui para fazer nada grandioso e que, logo, minha vida é descartável e pode a qualquer momento ser interrompida, de maneira simples também.

Há dois livros que estou lendo atualmente. Um é "O jogo imortal - O que o xadrez nos revela sobre a guerra, a arte, a ciência e o cérebro humano" de David Shenk. O outro é a Bíblia, que acredito ter sido escrita por Deus (os motivos pelos quais comecei a ler ambos os livros não são importantes aqui). Em algumas partes, creio que os livros são complementares. Ainda não os li inteiramente, mas creio que continuarei com esta conclusão quando terminá-los. Em tempo: quero dizer "terminá-lo", porque a Bíblia, também creio eu, não é um livro que se deva terminar de ler; é um livro que se deve ler até se terminar. Digo isto porque em "O jogo imortal", o autor diz que o xadrez surgiu para ser um jogo em que o jogador fosse o responsável pela sua conduta durante a partida, e não a sorte, o acaso, ou o destino, representado pelo lance de dados. O xadrez é um jogo que simboliza o livre-arbítrio humano, e que justamente por isso ele tem traspassado os séculos, incrustado-se em todas as culturas e circunavegado todo o globo. Afinal, o que faz a nossa espécie ser diferente das demais é a capacidade de pensar e tomar decisões de maneira autônoma. Oras, se não está ali escrito no Gênesis, na fábula de Adão e Eva, a tomada de decisão do homem de desobedecer a Deus, o pecado original, quando resolveu comer o fruto proibido, justamente porque ele é o dono de seu destino. Ele tem o livre-arbítrio. Livre-arbítrio este que vem automaticamente com a capacidade de pensar, e que gera, consecutivamente, a capacidade de transgredir. Em miúdos, o homem é um transgressor por natureza, um ser eminentemente subversivo. E somente transgredindo, ou em termos mais moralísticos, somente pecando que ele encontrará a verdade, ou a sua salvação.

Bom, pode até ser que eu tenha dado uma fugida do tema, já confessei em crônicas anteriores que sou meio prolixo, até um pouco dislexo, muitas vezes eu me perco em minhas próprias idéias. Afinal, vejam só, comecei falando dos meus dez mil dias de vida, passei para a minha última crise existencial e caí no xeque-mate que Deus dá, quando conduz o rei adversário por todos os quadrados do tabuleiro, até chegar naquele lugar, naquele exato lance, aquele momento que faz o camarada pensar: "Puxa, e eu achando que estava com o jogo na mão, achando que era o Rei da Cocada Preta!" Mas na verdade tudo não passava de uma armadilha, um ardil para mostrar que não somos nada, e seremos no fim um nada, mas que mesmo assim, devemos ser felizes. Pois foi para isso mesmo que nascemos. Simples assim.