terça-feira, janeiro 31, 2006

Indivíduo medieval

Está atomizado a sua motocicleta. Assim, tudo o que ocorrer a um, ocorrerá à outra. É o risco que corre por correr para chegar ao trabalho. Mora a quarenta quilômetros distantes do escritório. Entra cedo e o chefe já dissera que não toleraria mais atrasos - a carne será cortada!

Está na pista expressa da Marginal Tietê. Vendera o carro para comprar a moto e assim não perder o emprego. Não tem mais o rádio para lhe ocupar a mente enquanto enfrenta o inexorável trânsito paulistano. Não tem mais o trânsito - transita pelas entre-pistas. Mas tem o vazio que agora é ocupado pelos pensamentos desenfreados que surgem na mente.

Ultrapassa os carros e caminhões. E a vida passa em si - uma vida desmotivada. Que não justifica a necessidade de passar suas melhores horas do dia em benefício de outros que passam essas mesmas horas de melhor maneira. Que não lhe permite que essas horas possam ser passadas com algo que lhe satisfaça. Que não lhe dá explicações sobre as angústias que o afligem. Que não tem sentido. Que talvez nem Deus tenha. Onde não há diferença entre existir e não existir. Uma vida onde o único fim é a morte!

Imagina-se na cela de um cavalo, empunhando uma espada. A cada golpe, uma cabeça decepada. Ah, como seria fácil a vida assim! Uma vida cujo único motivo é a luta - franca e justa! Onde se sabe quem são os inimigos. Onde se sabe como será a morte.

Nos ferros do guard-rail da via. Onde seu corpo é arremessado. Um carro não dá seta mas vira. Viajavam em alta velocidade, o automóvel, ele e seus pensamentos - todos freados repentinamente.

Num só golpe, outra cabeça decepada... A carne foi cortada.

terça-feira, janeiro 24, 2006

Abstinência de você

Secura na goela, batimentos acelerados, dor de cabeça. Concentração é impossível. Terrível! Deve ser isso que um dependente químico deve sentir quando fica sem a droga...

Dou um salto, me levanto. Corro para o carro e corro para a rua. Quarenta quilômetros que levarão quarenta minutos. Ai meu Deus! É muito tempo! Não sei se aguento...

Ponho um CD. "Filmes de Guerra, Canções de Amor". Quarenta minutos! Quarenta minutos! Vai dar para me distrair enquanto não passam os quarenta quilômetros. Acompanho o CD cantando. "Mapas do Acaso", "Além dos Outdoors", "Pra Entender", "Quanto Vale a Vida?"...

Acaba a voz. A goela, a boca, os lábios. Tudo seco. Sem voz. Com tempo demais para chegar lá, sem tempo para aguentar...

Sussuro as músicas. Preciso de distração. Vinte e cinco minutos. Ainda! Vinte e cinco minutos! "Crônica", "Pra Ser Sincero", "Muros e Grades", "Alívio Imediato"... Alívio?! Imediato?! Sacrilégio!

É o alto de um viaduto. Consigo ver a cidade de relance. Os prédios, as luzes. Está uma noite bonita. O que seria de mim se fosse dia e se essas ruas estivessem congestionadas? Oitenta quilômetros por hora. Estou em velocidade constante desde meia hora atrás. Não reconheço o vermelho dos faróis. "Ando só", "O Exército de Um Homem Só", "Às Vezes Nunca". A minha preferida do álbum. Saboreio a canção. "... o que você faria se estivesse no meu lugar... se tivesse que fugir e não pudesse escapar?"... Opa! Cheguei...

Saio do carro e disparo para o portão. Entro no quintal, paro na porta, toco a campainha. Até ela abrir leva alguns segundos. Uma eternidade! Abriu...

Agarro-a. Fecho os olhos e a levo a minha boca. Isso sim, alívio imediato! Cessa a dor na cabeça, a frequência cardíaca se normaliza, a via bucal se entumece. Faço uma pausa e respiro...

Vejo você. Os verdes olhos, os doces lábios, o lindo rosto. E volto a beijá-la...

quinta-feira, janeiro 19, 2006

A guerra civil brasileira

Se não houvesse Estado, se não houvesse o detentor legítimo do uso da violência, certamente viveríamos num lugar onde todos pudessem fazer tudo o que lhes fosse possível, um lugar onde todos fossem plenamente livres. Mas em tal lugar, quem quisesse atentar contra a vida de alguém, assim poderia, pois não haveria poder superior que o constrangesse. Esse tal lugar, sem poder superior, onde a anarquia imperasse, fatalmente seria um lugar terrível de se viver. A vida de cada um estaria em constante perigo. A morte por violência espreitaria a todos a todo o momento.

Foi por esse raciocínio, imaginando como seria o mundo sem Estado, que Thomas Hobbes, filósofo inglês nascido no século XVI, desenvolveu sua teoria. Ele concebeu o Estado como sendo uma instituição dotada de poderes superiores que pudesse tomar decisões em nome de todos os contratantes (os cidadãos, no caso). O Estado seria instituído quando cada um renunciasse ao seu direito natural de fazer o que se quisesse, e passasse a este tal direito. Nesse momento, o estado de natureza, que é o estado onde todos podem tudo, onde todos estão em guerra contra todos, é anulado e o estado civil é instaurado. Oras, temos então a razão de ser do Estado: preservar a vida dos cidadãos.

Um parênteses. Hobbes não determina como surgiu o Estado. Ele preconiza sua formação a partir dos indivíduos, ou seja, os indivíduos precedendo o Estado. Mas isso ele não data, ou seja, não aponta historicamente sua formação. Sua concepção é puramente teórica. Já seus sucessores concebem o contrário. Desde sempre existiu o Estado, e o indivíduo é conseqüência da sociedade moderna.

Mas isso não invalida em nada o que Hobbes teorizou. Seu trabalho serve muito bem para entender como seria uma sociedade sem leis e sem um poder que faça elas valerem. E toda essa introdução que faço é provocada por uma notícia que assisti na semana passada.

Estava assistindo televisão com a sogra na casa da minha namorada, enquanto eu a esperava fazer não sei o quê (é que agora eu não me lembro). Era um noticiário, um que passava na Record no fim de tarde, apresentado pelo Faccioli e por uma jornalista bonitinha, mas que não me lembro o nome. Acho que já a vi em outro canal apresentando programa esportivo, salvo engano meu. Bom, o caso era que estava sendo apresentado uma reportagem sobre a série de atentados realizados a carros e bases da Polícia Militar aqui em São Paulo. Hobbes, se estivesse conosco assistindo ao mesmo noticiário, diria que esses ataques seriam indícios de guerra civil, pois um outro poder estaria rivalizando com o poder estatal. Ele diria que estaria deflagrado o estado de natureza.

Mas o que me deixou mais estarrecido na reportagem foi um depoimento de um soldado da PM que, por motivos óbvios, não se identificou. Disse o soldado que eles retardavam de 3 a 5 minutos a chegada aos locais onde haveria qualquer ocorrência de possível confronto com bandidos. "Temos medo de morrer", sentenciou o soldado. Tal é a capacidade de se armar dos bandidos, tal tem sido cruento o dia-a-dia dos policiais, que eles estão com medo. A polícia está com medo de bandido!

Essa reportagem é um bom retrato da falida situação da segurança pública. No Brasil de hoje, a polícia é açoitada pelos bandidos, os policiais são mal aparelhados, ganham mal e têm medo de morrer; os cidadãos não temos segurança nenhuma e nossas vidas estão em constante risco, pois nem mais a polícia quer nos socorrer.

E se a polícia é incapaz de manter o estado civil, pois é incapaz de exercer soberana e legitimamente o monopólio da violência, a vida dos cidadãos não está segura. Logo, um Estado incapaz de garantir a vida de seus cidadãos não tem razão nenhuma para existir.

segunda-feira, janeiro 16, 2006

A mulher mais bonita do mundo

Estive pensando nas qualidades que a mulher mais bonita do mundo deve possuir. Ter uma bela forma, um rosto lindo, é trivial. Muitas mulheres têm isso por aí. Qualquer Gisele Bündchen ou Juliana Paes tem. E que não é suficiente para ser a mais bela. Para tal, é preciso mais.

É preciso não só ter um rosto lindo de se ver na fotografia ou na televisão. O rosto deve ser lindo principalmente quando iluminado pela luz lunar, quando é possível testemunhar a forma mais brilhante que os olhos que a mulher mais bonita do mundo deve ter.

É preciso não só ter um belo corpo. O corpo precisa ser belo também mesmo após várias picadelas de mosquitos e pernilongos inconvenientes. E também precisa ser vibrante, saber ressoar a música do prazer, quando sua pele torna-se a mesma da pele de outro corpo.

É preciso ter cheiro bom. Cheiro que seja bom de cheirar. Bem assim no cangote, que dê vontade de não parar, que dê vontade de mordiscar.

É preciso ter mãos de veludo. Mãos que sejam gostosas de segurar, de acarinhar, de beijar, de sentir na pele. E que sejam mãos prazerosas, que saibam fazer a carícia certa.

É preciso ter lábios extasiantes. Lábios sabor de mel, úmidos, insaciáveis e viciantes. Tem que ser lábios que não se tenha vontade de parar de beijar e que saibam o beijo certo.

É preciso ser graciosa inclusive dormindo. De um jeito assim encolhida, com o rosto esparramado sobre as mãos, o corpo meio de lado, tal qual uma gata que descansa ao pé da poltrona.

E é preciso uma coisa importantíssima. Saber a diferença entre uma espinha, um cravo-de-pele e um grão de milho. Sim, porque além de aracnídeos (os cravos-de-pele), grãos de milhos brotam dos poros de nossa pele. E é preciso explicar essa diferença aos leigos que, por ventura, se aventurem a namorá-la.

E o que é imprescindível. Além de todas essas qualidades, a mulher mais bonita do mundo, para ser a mais bonita, tem que ser minha. Só minha.