domingo, maio 29, 2005

A borra do café

Acorda. Olha o relógio. Seis e vinte e cinco piscante. Está atrasado. Necessita de acordar às seis diariamente, mas hoje necessitava de acordar às cinco. O trânsito de São Paulo é tão endêmico que o paliativo rodízio de veículos já se tornara uma instituição. E hoje é o dia do seu carro não rodar. Tinha que ter acordado mais cedo para antes do horário do rodízio estar na rua. Agora não tinha jeito, teria que se locomover ao escritório de metrô e ônibus.

Rotina cotidiana matinal. Tira roupa, abre chuveiro, ensaboa, ensaboa, põe xampu, esfrega, esfrega, e água e água e água, seca com toalha, põe roupa, passa perfume, penteia cabelo, pronto. Pode ir trabalhar. Não costuma tomar o café - faz isso quando chega no escritório - para ganhar tempo, mas como já estava atrasado mesmo, pensa: hoje vou tomar café! Gosta muito de beber. Coado, caseiro, expresso, aromatizado. É um cafeinólotra. E gosta de fazer também. Sempre forte. O fraco, o carioca, lhe dá azia.

Processo genérico de preparação da bebida. Põe água no bule, bule no fogão, acende fogo, enquanto água ferve, pega garrafa térmica, pega suporte de coador, coador de papel, calcula quantidade de pó de acordo com água a ser fervida, põe pó no coador, pega água borbulhante, despeja no coador...

Atenção! O despejar da água é um dos segredos para que o café seja bem passado e fique forte. Esse despejar exige uma técnica, passada de geração para geração, fundamental para o sucesso de sua preparação. Conforme sua mãe lhe ensinou, a água deve ser despejada de modo lento, bem devagar. Primeiro, despejando a água no centro do pó. Quando o pó já estiver todo coberto, e mais um tantinho, o despejo deve ser continuado com movimentos circulares, de forma que o líquido caia quase beirando o coador.

Sabia muito bem disso. Porém, havia fervido a água numa panela, ao invés de um bule. O bule tem o bico, essencial para o ritual do despejo da água. E o bule estava sujo. Praguejou contra o porco que deixou a parte do bico meio suja, com algo que parecia ferrugem. Fazer o seu delicioso café com uma água enferrujada? Nem pensar! Lavar o bule? Fora de cogitações! Estava muito atrasado. E com fome. Então pegou uma panela, anatomicamente imprópria para a preparação do seu café.

O despejo da água é um desastre. Primeiro que não consegue cumprir o ritual à risca. Segundo que parte da água cai para fora do coador, chegando a queimar sua mão. Urra. Primeiro impulso: atirar a panela na parede. Contém-se. Queimaria-se de novo. Segundo impulso: chutar o que tivesse a sua frente. Uma cadeira, a garrafa térmica, a mesa. Não chuta. Consegue se conter novamente. E mais. Consegue terminar de coar o café. Mas ferve de ódio por dentro, como a água que fervia na maldita panela.

Com o café coado, cata o coador de papel. Ia jogá-lo fora, no cestinho de lixo, mas aí não se contém. Concentra sua força na mão que apertava o papel e atira-o com raiva. O coador espatifa na parede e a borra escorre, caindo bastante também na pia. Vê o que fez. A borra do café espalhada tem um aspecto de excremento. Lembra bosta jogada ao ventilador, bem como diz o ditado.

Ali está a sua vida. Uma borra de café esparramada na pia. Tem chuveiro elétrico, geladeira, água encanada, carro, televisão via satélite, celular, computador. Tem pai, mãe, irmão, esposa, filhos, amigos. Tem supermercado, hospital, escola, universidade. Tem cinema, bar, futebol, clube. Tem tudo isso. Mas tem também de trabalhar, de respeitar horários, de se submeter a leis, costumes e convenções, de pagar contas e impostos. Tem de aturar os chiliques da esposa, as manhices do filho, a rabujice do chefe, as intromissões dos pais. Tem de refrear seus instintos. E tem sentimentos. Frio, calor, fome, desejo sexual, medo de morrer. E ainda tem falta de dinheiro. Tudo isso tem a sua vida.

Respira fundo, limpa a pia, engole o café, o pão, cata a mala e as chaves, pega o carro e se vai. Para cumprir sua borra de vida. Uma bosta de café esparramada na pia.

Ivo La Puma
São Paulo, 06/05/2005